Muricy Ramalho é um homem comum.
Um homem sério, honesto, trabalhador, até certo ponto competente, humilde, na maior parte do tempo, um tanto arrogante quando se sente acuado, sobretudo quando questionado. Jamais foi discípulo de Telê Santana, como arriscam alguns, como gosta de se auto-intitular o próprio Muricy. São estilos muito diferentes. Telê não era um homem comum. Era um técnico “de jogador”, des¬cobridor de vocações, corretor de deficiências, incansável aperfeiçoador de fundamentos. Um “treinador” na velha acepção do termo. Um tempo em que não havia ternos italianos nos bancos de reserva dos times brasileiros.
Muricy jogou naqueles tempos, trouxe deles a simplicidade da camisa pólo com agasalho e boné, herdou de Telê um certo mau humor, uma certa aversão pelo antijogo, a preferência pelo futebol ofensivo. Falta-lhe, entretanto, o dom natural para identificar o talento, para forçar cada atleta a superar, por força da insistência, as suas limitações. E, sobretudo, para criar as condições ideais para que as qualidades de cada jogador apareçam, o que Telê muitas vezes fez até mesmo com jogadores limitados.
Sem Telê, Ronaldão não teria sido mais que um beque-de-fazenda truculento e afobado. Cafu nem jogaria na lateral, pois era volante de formação, além de não ter sequer um vestígio de competência nos cruzamentos. Telê ensinou Cafu a usar a velocidade e a força física na região menos ocupada do campo, onde faria a diferença. Com ele, Cafu aprendeu a tornar-se exemplo de ala, a driblar, a cruzar, a fazer gol.
Quem, como eu, acompanhou a trajetória de Raí no São Paulo, pode afirmar: sem Telê, Raí seria, para sempre, “o irmão do Sócrates”, um meia pesado e lento, de talento estático, e, assim, inepto. Assim foi com Carlos Alberto Silva como técnico e, depois, com o improvisado Forlan. Então veio Telê, que ensinou Raí a usar o corpo para proteger a bola, a fazer-se ágil pela inteligência do toque, que adiantou Raí e o aproximou da área, cobrando dele que assumisse a responsabilidade de fazer gols. Assim, nasceu o jogador que se tornou um dos maiores ídolos e um dos atletas mais decisivos e identificados com a camisa do São Paulo em todos os tempos. Sem a genialidade de Sastre ou Zizinho, sem a classe de Pedro Rocha, Raí tornou-se mais importante para a nossa história que todos eles.
Muricy jamais fez ou fará com um jogador o que Telê fez com esses e com tantos outros. Talvez porque esteja no limbo: não é um “treinador”, um formador de jogadores, como os melhores técnicos dos tempos de Telê, tampouco é um estrategista, como Wanderley Luxemburgo, capaz de transformar uma partida com alterações feitas no timing perfeito e nas peças adequadas.
Luxemburgo, como sabemos, não é um homem comum. Ao contrário de Telê, não se faz admirar pela simplicidade. Usa os tais ternos italianos, atua como manager, empresário e sabe Deus mais o quê. Mas monta e mexe em um time de futebol como ninguém no futebol atual. Jamais substitui sem ter um objetivo tático e raramente deixa de atingi-lo.
Muricy flutua, suspenso no ar, entre expoentes de duas gerações diferentes de técnicos: entre Telê – que formava grupos fortes desenvolvendo qualidades individuais e treinando fundamentos à exaustão – e a concepção cerebral de Luxemburgo, que estuda cuida¬do¬samente as características de seus atletas, compõe e distribui com inteligência o time titular e utiliza todo o elenco de forma a potencializar o coletivo, sem enfraquecer o individual.
Muricy é um excelente exemplo de um homem que trabalha, que se esforça, que merece deferência, mas que nasceu sem a grandeza dos que se destacam. Muricy é bom, mas é opaco. Não há brilho.
Luis Felipe Scolari é da mesma geração de Muricy. Como ele, também está a meio caminho entre o “treinador” Telê e o “estrategista” Luxemburgo, sem se assemelhar a nenhum dos dois, mas distinguindo-se tanto quanto ambos. Se Telê era capaz de fazer cada jogador alcançar o seu limiar técnico, Felipão faz cada jogador assumir o espírito de entrega total, de superar-se pela vontade. Se Luxemburgo monta o time para sufocar o adversário, para assumir o controle do jogo, impor volume de jogo, Felipão monta suas equipes como máquinas de marcação, que abusam da força, buscam uma ocupação territorial e uma movimentação capaz de minar as forças do inimigo, a fim de induzir e aproveitar seus erros. É, essencialmente, um motivador, que exige de seus atletas a austeridade e o sacrifício, que faz com que a alma guerreira de suas equipes seja tão admirada quanto a poesia dos esquadrões de Telê e a impressionante eficiência dos times de Luxemburgo.
Felipão não é um homem comum.
Entre Telê, Luxemburgo e Felipão, um fator em comum: o carisma dos líderes. Cada um ao seu estilo, todos são incontestavelmente líderes. Amados por alguns de seus comandados, temidos por outros, até odiados por alguns. Mas respeitados por todos e, assim, capazes de transmitir a confiança e de inspirar a volúpia que determina as maiores conquistas.
Muricy não é capaz de potencializar talentos, de contagiar um grupo, de transformar um time em uma força irresistível. Está, sim, acima da obscura zona da me¬diocridade, mas desgraçadamente distante da velocidade de raciocínio, da liderança, da inspiração e, mesmo, da sorte que acompanha aqueles que fazem a diferença.
Muricy é um homem comum.
Mas o São Paulo Futebol Clube, tricampeão continental, tricampeão mundial, o mais novo e o mais vencedor entre os grandes clubes brasileiros, é único, é poderoso, e não deve admitir um time comum, um jogo comum, uma disposição comum. Não há e não pode haver espaço no São Paulo para um técnico bom, mas previsível; para um ser humano de bem, que não passa de um homem comum.
- "Fanfarra para o homem comum (2007)"
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